segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Quem são os cegos?

“Por que foi que cegámos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso? Diz. Penso que não cegámos, penso que estamos cegos. Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”
 (Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago).

Eu ando muito de ônibus, mais do que de metrô ou de trem. Por isso, venho eu de novo compartilhar com vocês algo que ouvi em um ônibus e que me marcou muito.
Estava eu indo prá Central do Brasil, quando no meio do meu trajeto sobem ao coletivo duas pessoas, uma mulher e um rapazinho, os dois cegos. Eles se sentaram na poltrona perto do trocador, mais ou menos no meio do ônibus, e mais ou menos perto da porta de saída do veículo.
Quando eu ia descer, fiquei de pé perto da porta, e escutei um pouco da conversa deles com o trocador. A mulher disse assim: “mas eu tenho muita curiosidade de conversar com quem enxerga, pra saber se realmente as coisas são complicadas desse jeito”. Vejam que frase. Não me lembro da resposta do trocador. Pelo prosseguir do papo, ele não deve ter se alongado muito nela.
Mas em pensamento eu dei a minha resposta à pergunta daquela mulher. Além de um óbvio, ‘sim, as coisas são complicadas assim mesmo’, eu refleti um pouco sobre o uso que ela fez da palavra ‘realmente’. Será que nós, que enxergamos, entendemos ‘realmente’ o mundo? Não me refiro à discussão filosófica sobre o que é ou não realidade, mas a outra idéia. Será que nós, que enxergamos (e demos Graças a Deus por isso), temos mais capacidade de entender o mundo do que os nossos amigos cegos do ônibus? Ou será que, ao contrário, não caímos na armadilha, propiciada pela visão, de ficarmos presos à superficialidade do visível? Presos à ‘beleza fácil’ de que fala uma canção belíssima da Zélia Duncan – de que valorizamos a beleza exterior, sem perceber que ela pode esconder ‘o mau, o sujo, o desprezível’? Talvez muitas vezes nós, que vemos, não enxergamos de fato, como os cegos de alma tão bem apresentados por Saramago.
A conversa da mulher, do rapazinho e do trocador prosseguiu por uns minutos até a próxima parada, onde eu e eles descemos. Eu os ajudei a atravessar a rua, com a língua coçando pra falar pra ela que “não”, que a vida não é menos complicada pra quem enxerga, que eu mesma em muitos momentos me sinto muito deslocada nesse mundão de meu Deus... mas não falei nada, apenas indiquei a direção que achava ser a melhor pra eles. Mas fui corrigida pelo rapazinho cego que, muito melhor localizado que eu, disse mais ou menos assim: “não, é melhor a gente ir por fora, contornando a Central, aí a gente chega na entrada do metrô, nas escadas rolantes”. E ele estava certo. Pra eles, o caminho que eu indiquei era mais complicado, era mais reto mas talvez por isso mesmo os deixaria sem referência. E eu fiquei ali por alguns segundos olhando-os ir embora, admirada com seu extraordinário senso de referência. E encantada com o cuidado que um tinha com o outro, sentimento que muitas vezes nós 'videntes' esquecemos de exercitar. Segui meu caminho, e enquanto seguia pensava naqueles dois cegos e na curiosidade simples e tão profunda daquela mulher.

5 comentários:

Amanda Guerra disse...

Mel, ía fazer por e-mail, mas não tenho problema em fazer pública minhas desculpas. Perdão por domingo, eu não costumo furar, nem pra me divertir, pode averiguar ou crer em mim, mas é verdade. Esse fim de ano está mais louco do que os outros e meus planos de horário se atropelaram por conta de uns trabalhos que precisei imprimir, e ....enfim, não pude estar com você no CCBB, só vi seu tel quando cheguri em casa, mas sabia que estaria com a Val, senão, iria de qualquer jeito!.
Um dos livros mais impactantes que li foi Ensaio sobre a cegueira, levei uma porrada, precisei ler revista de mulezinha pra emburrecer um pouco, meu coração e mente em conflito com a humanidade e com medo danado de fechar os olhos (por que viajo nessas coisas).
A vida é sempre complexa, não importa muito as ferramentas que temos para avaliá-la, diga isso da próxima vez, vale a pena.
Minha mãe conta uma história engraçada de cego, um dia ponho no meu descaminho.
Com carinho enorme, se quiser Nárnia eu empresto, beijim

Mel Vilanova disse...

Dinha, você não tem que se desculpar de nada, porque sei que você tá no olho do furacão, e porque entendo que imprevistos acontecem. Há tempos atrás eu ficava chateada com essas coisas, mas agora não mais.
Sim, a vida é sempre complexa. E acho que parte da complexidade é a gente que cria. Pelo menos na minha vida é assim, às vezes complico tanto coisas que poderiam ser tão mais simples...
Ah, um dia te peço emprestado sim o Nárnia, obrigada! Deixa só eu desatolar a fila de livros que tenho que terminar de ler...hehe...sabe que lendo teu post sobre o Nárnia e sobre mundos mágicos me lembrei, inclusive, que tenho aqui emprestados os 4 volumes de Brumas de Avalon, que ainda não li? Mais um título prá minha lista...rs
Bjs.!

Valeria disse...

Brumas de Avalon muda uma vida, eu li os quatro volumes em três dias, o que - considerando que eu não sou de ler ficção - é relevante.
Sou feliz de ter vocês na minha vida, beijos

Bethania Guerra de Lemos disse...

Ai meu Deus, essas meninas escrevem e eu choro. Mel, que maravilha ler os teus textos, a tua percepção do mundo. Também lembrei da história da minha mãe com o cego, mas a Dinha disse que ia contar, deixo pra ela. Eu lembrei também da experiência da minha mãe com os surdos, seus alunos. Tinha um que amava música. Sim, música, e tenho certeza que a percebia muito melhor que nós. Desenhava notas musicais nos trabalhinhos... Ele "via" a música. Talvez assim como dizem que acontecia com Betthoveen quando ficou surdo (pergunta pra Val nossos aprendizados na Sociedade Teosófica sobre isso).
Um beijo no seu coração.

Mel Vilanova disse...

Be, que interessante essa estória do surdo que adorava música! Nossa, fiquei emocionada. A música é uma energia muito forte mesmo, toca no fundo da alma. E além disso, nos ajuda a relativizar o que é 'deficiência'...nossa, um menino que é surdo e que vivencia a música é muito do eficiente.
E estou curiosa sobre a estória que a Amanda vai contar, e sobre a estória do Beethoven que vou pedir à Val pra me contar.
Beijos também!!