quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Receita de ano novo

Chegamos ao final de mais um ano e de mais uma década. Se em outros momentos do ano o caráter cíclico da vida passa despercebido por nós, no fim do ano ele se mostra com toda sua força. É momento de reflexão e de preparação interna pra mais um ano que começa.
Termino esse que acho que será o últimpo post do ano com as palavras de Drummond, que resumem bem os sentimentos que nos tomam nesse período de Festas. E aproveito pra desejar pra todos (e pra mim também) um 2011 próspero e feliz, e que saibamos fazê-lo verdadeiramente novo. 
Feliz Ano Novo!!

Receita de ano novo 
(Carlos Drummond de Andrade)

Para você ganhar belíssimo Ano Novo 
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, 
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido 
(mal vivido talvez ou sem sentido) 
para você ganhar um ano 
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, 
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; 
novo 
até no coração das coisas menos percebidas 
(a começar pelo seu interior) 
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, 
mas com ele se come, se passeia, 
se ama, se compreende, se trabalha, 
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, 
não precisa expedir nem receber mensagens 
(planta recebe mensagens? 
passa telegramas?) 
 

Não precisa 
fazer lista de boas intenções 
para arquivá-las na gaveta. 
Não precisa chorar arrependido 
pelas besteiras consumidas 
nem parvamente acreditar 
que por decreto de esperança 
a partir de janeiro as coisas mudem 
e seja tudo claridade, recompensa, 
justiça entre os homens e as nações, 
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, 
direitos respeitados, começando 
pelo direito augusto de viver. 
  

Para ganhar um Ano Novo 
que mereça este nome, 
você, meu caro, tem de merecê-lo, 
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, 
mas tente, experimente, consciente. 
É dentro de você que o Ano Novo 
cochila e espera desde sempre.





sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Uma lembrança de Natal

Sister, you've been on my mind....
Sempre passo meus natais com meus pais e irmã amados. Acho que o fato de celebramos o nascimento de uma criança me faz sentir um pouco criança também nessa data, e por isso é tão fundamental estar com eles. E a minha recordação de Natal mais bonita envolve uma criança, e o despertar da esperança que essa data evoca. 
Eu não me lembro exatamente o ano em que o fato ocorreu. Deve ter sido há quase uns 18 anos atrás (depois de quando foi tirada a foto acima, que pelo que me lembro também foi tirada num período de Festas). Nossa, como o tempo passa rápido, porque ainda tenho essa memória tão viva em mim como se fosse de ontem. Quando eu tinha uns 14 anos mais ou menos, fui trabalhar, ou melhor, fazer 'uns bicos' como operadora de brinquedos num parque de diversões perto de casa. Era um parque grande, se chamava Play Toy, e agora tô até me perguntando como é que eles contratavam menores de idade e sem experiência nenhuma pra operar os brinquedos...mas deixa isso pra lá...o fato é que eu tinha um empreguinho de fim de semana que me garantiu uns troquinhos pra comprar presentes de Natal pros meus pais e irmã naquele ano.
Combinei com meus pais de incentivarmos minha irmã, que deveria ter uns 6 anos, a escrever uma cartinha pro Papai Noel pedindo um presente de Natal. A idéia era que ela escrevesse pra ele pedindo o que eu tinha comprado pra ela, e levá-la a colocar a tal carta num sapatinho na janela e aguardar até a chegada do presente. Ela era pequena, e a gente pensava que era bonito alimentar nela  a crença no Papai Noel, no sentido de alimentar nela a esperança de que seus sonhos poderiam se tornar realidade se ela acreditasse neles. Eu tinha comprado pra ela um batonzinho em forma de moranguinho muito comum na época. Mas Amanda, que sempre pensou grande, queria pedir pro Papai Noel algo caro, não me lembro o quê, e nós tivemos um trabalhão em persuadi-la a escolher uma coisa mais barata. "Amanda, o Papai Noel tem que comprar presente pra todas as crianças do mundo, pede a ele algo mais baratinho, como um batonzinho...". Ela ficou meio desapontada, mas escreveu o que a gente a induziu a escrever - ela queria um batonzinho de presente de Natal. Colocou a cartinha num sapatinho na janela e aguardou.
Depois da Ceia, batonzinho já colocado no sapato, estávamos na sala e fizemos a simulação de termos ouvido barulhos na janela onde estava o calçado com a cartinha. "Amanda, acho que o Papai Noel já passou aqui! Vai lá ver se teu presente está lá!" Ela ficou cheia de medo, mas foi. E nós fomos juntos, nos entreolhando. Ela pegou o presente, toda admirada e contente, e exclamou: "O Papai Noel existe!" E logo se pôs a chorar de alegria. Não preciso dizer que nós choramos juntos com ela.
E quem me conhece bem pode supor que estou chorando agora também, e é verdade. Essa estória me emociona demais, como sempre me emociono ao lembrar do amor que une minha família.
Sei que o mundo está muito complicado, que a esperança agoniza no cantinho de um corredor lotado de hospital, e que o Natal parece cada vez mais se reduzir a um feriado comercial. Mas ainda creio na importância de celebrar o Natal, como um momento pra se estar em companhia de pessoas queridas, um momento pra sonhar juntos, pra reforçar o estoque de amor e esperança dentro de nós.
E é isso que desejo a quem passar por aqui, que possa estar junto aos seus nessa data, e que tenha a esperança renovada em seu coração. Feliz Natal a todos.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Leminski e a razão de ser desse blog

Paulo Leminski é um poeta que tenho que conhecer melhor. Aliás, a literatura brasileira tem muitas pérolas maravilhosas que tenho que conhecer melhor.
Sem querer me comparar ao Leminski ou a qualquer outro grande nome de nossa literatura, digo a vocês que encontrei em suas palavras o motivo prá existência desse blog. Compartilho, então, o poema que encontrei num jornal que lia hoje enquanto aguardava numa recepção de um consultório médico. Mais um delicioso presentinho que a vida vez em quando me dá.
Razão de Ser
Escrevo e pronto.
Escrevo porque preciso.
Preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada a ver com isso.
Escrevo porque amanhece,
e as estrelas lá no céu lembram letras no papel.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Quem são os cegos?

“Por que foi que cegámos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso? Diz. Penso que não cegámos, penso que estamos cegos. Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”
 (Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago).

Eu ando muito de ônibus, mais do que de metrô ou de trem. Por isso, venho eu de novo compartilhar com vocês algo que ouvi em um ônibus e que me marcou muito.
Estava eu indo prá Central do Brasil, quando no meio do meu trajeto sobem ao coletivo duas pessoas, uma mulher e um rapazinho, os dois cegos. Eles se sentaram na poltrona perto do trocador, mais ou menos no meio do ônibus, e mais ou menos perto da porta de saída do veículo.
Quando eu ia descer, fiquei de pé perto da porta, e escutei um pouco da conversa deles com o trocador. A mulher disse assim: “mas eu tenho muita curiosidade de conversar com quem enxerga, pra saber se realmente as coisas são complicadas desse jeito”. Vejam que frase. Não me lembro da resposta do trocador. Pelo prosseguir do papo, ele não deve ter se alongado muito nela.
Mas em pensamento eu dei a minha resposta à pergunta daquela mulher. Além de um óbvio, ‘sim, as coisas são complicadas assim mesmo’, eu refleti um pouco sobre o uso que ela fez da palavra ‘realmente’. Será que nós, que enxergamos, entendemos ‘realmente’ o mundo? Não me refiro à discussão filosófica sobre o que é ou não realidade, mas a outra idéia. Será que nós, que enxergamos (e demos Graças a Deus por isso), temos mais capacidade de entender o mundo do que os nossos amigos cegos do ônibus? Ou será que, ao contrário, não caímos na armadilha, propiciada pela visão, de ficarmos presos à superficialidade do visível? Presos à ‘beleza fácil’ de que fala uma canção belíssima da Zélia Duncan – de que valorizamos a beleza exterior, sem perceber que ela pode esconder ‘o mau, o sujo, o desprezível’? Talvez muitas vezes nós, que vemos, não enxergamos de fato, como os cegos de alma tão bem apresentados por Saramago.
A conversa da mulher, do rapazinho e do trocador prosseguiu por uns minutos até a próxima parada, onde eu e eles descemos. Eu os ajudei a atravessar a rua, com a língua coçando pra falar pra ela que “não”, que a vida não é menos complicada pra quem enxerga, que eu mesma em muitos momentos me sinto muito deslocada nesse mundão de meu Deus... mas não falei nada, apenas indiquei a direção que achava ser a melhor pra eles. Mas fui corrigida pelo rapazinho cego que, muito melhor localizado que eu, disse mais ou menos assim: “não, é melhor a gente ir por fora, contornando a Central, aí a gente chega na entrada do metrô, nas escadas rolantes”. E ele estava certo. Pra eles, o caminho que eu indiquei era mais complicado, era mais reto mas talvez por isso mesmo os deixaria sem referência. E eu fiquei ali por alguns segundos olhando-os ir embora, admirada com seu extraordinário senso de referência. E encantada com o cuidado que um tinha com o outro, sentimento que muitas vezes nós 'videntes' esquecemos de exercitar. Segui meu caminho, e enquanto seguia pensava naqueles dois cegos e na curiosidade simples e tão profunda daquela mulher.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Confraternizações de Fim de Ano

Todo final de ano somos testados por algumas maratonas que nos são impostas: o término das obrigações profissionais ante as tão esperadas férias, as compras de Natal e as confraternizações de fim de ano. 
Sou atingida pela primeira maratona, embora em graus variáveis pois em meu emprego a intensidade de trabalho nessa época varia muito de ano pra ano - trabalhamos em projetos diversos, e conforme o projeto e seu calendário, temos um fim de ano mais ou menos movimentado. Não sou muito atingida pela maratona das compras de fim de ano pelo simples fato de ter por princípios não me sentir obrigada a distribuir presentes de Natal. Além disso, o grande apreço que tenho pelo sentido verdadeiro da data e minha total falta de paciência com aglomerações que não sejam as de blocos de carnaval me mantém afastada dos shoppings e centros comerciais nessa época.
No entanto, sou totalmente atingida e nocauteada pela terceira maratona, a das confraternizações de fim de ano. Acabo de chegar de uma, por sinal. Vocês podem estar achando que tô exagerando, que não cansa sentar numa mesa de bar por umas horas com os amigos...mas eu defendo que participar de uma extensa programação de confraternizações de fim de ano é  sim como participar de uma maratona. Basicamente,  porque pode ser tão desgastante como correr 42 km, e também porque o preparo físico é fundamental para o sucesso ou o fracasso da empreitada. Se você for uma pessoa sociável como eu, que participo de vários grupos de amizades, receberá incontáveis convites. E se você é sociável é gregário, então fará o possível para participar de todos os eventos, e aí começará a tua ruína. É como se você resolvesse começar a corrida sem ter técnica nenhuma, mas tua alegria por estar ali é tão grande que você segue em frente, acreditando que o encontro com a linha de chegada aliviará todas as tuas dores. Mas no meio do caminho você já começa a se sentir exausto, e fica se perguntando por que foi entrar nessa. Não que eu questione o fato de estar com meus amigos, mas questiono por que eu sempre forço meu corpo além do que ele suporta. E pra quem acha que não há sobrecarga física nenhuma em participar da maratona das confraternizações, pense só no quanto de besteira que você come no mês de dezembro em amigos ocultos, almocinhos, happy hours, lanchinhos e o escambáu. Mesmo quem não segue uma alimentação regrada vai sentir os efeitos dessa comilança.
Estou me sentindo muito cansada. Mas não vou melhorar, pois comecei a corrida e ainda faltam muitos quilômetros pra que ela chegue ao fim. Eu não vou desistir, mas vou tentar pelo menos não chegar ao final pior do que já estou.
Bem, caras leitoras, espero sobreviver a essa maratona, e voltar a esse espaço em breve, escrevendo sobre os temas que estão na minha cabeça mas que não consigo desenvolver pois me faltam condições físicas e mentais. A gente se vê em breve. Agora eu vou lá, tenho que dormir pra recarregar um pouco a bateria, pois amanhã tem mais outra festinha... 

domingo, 12 de dezembro de 2010

Pizza, sorvete e panetone

Ontem recebi dois casais de amigos aqui em casa. Amigos de longa data, por sinal. Não que amizade verdadeira seja medida por seu tempo de existência, pois não o é. Esse ano tive a prova disso, quando vi terminar uma amizade de dezesseis anos ao me dar conta de que nesse tempo todo não conhecia a pessoa com quem lidava. Mas não quero falar disso. Quero falar nesse texto das AMIZADES de verdade, com todas as letras em maiúsculo.
Como dizia, vieram aqui em casa meus amigos Ana e Anderson, e Márcia e Sérgio, ambos os casais com seus respectivos rebentos, meus sobrinhos do coração. O motivo da reunião foi que faltava apresentar meu cafofo prá Marcinha, mas sabemos que amigo gosta de estar junto, não importa fazendo o quê. Temos passado bons momentos juntos nesses mais de 10 anos de nossa amizade, e hoje não foi diferente. Nosso encontro foi acompanhado por um banquete composto de pizza, sorvete e panetone, além de refrigerante e suco de caixinha. Pra ‘parrudear’ a amizade – usando um verbo criado por outra amiga que um dia aparecerá em alguma das estórias do meu blog – nada melhor do que uma refeição bem calórica – apesar da temperatura de 50 graus que estamos tendo nesse nosso pré-verão carioca.
Conheci a Ana e a Márcia quando fazíamos o Pré-vestibular para Negros e Carentes. Naquela época, nosso objetivo era entrar em uma universidade e a partir daí realizar nossos sonhos, que eram muitos. De lá pra cá, estudamos, trabalhamos, fizemos trabalho voluntário nesse projeto de mobilização social fantástico que é o PVNC, viajamos juntas - na maioria das vezes sem grana, como o inesquecível “Big Pobre” em São Pedro da Aldeia não nos deixa esquecer...- e continuamos a sonhar juntas. Por conta das rotinas diferentes, hoje não nos vemos tanto como antigamente, mas como amizade verdadeira também supera a distância, isso não foi problema prá gente. Hoje eu sou madrinha de casamento da Ana e do Anderson, juntamente com o Sérgio e a Márcia, e esta é madrinha da filha do Anderson e da Ana, e esta por sua vez é madrinha do filho do Sérgio e da Márcia. Entendeu, né? Tamo junto e misturado!
O Anderson eu já conhecia antes de conhecer as meninas. Foi quando eu participava da capela perto de casa, que ele e a família também freqüentavam. Como geralmente rolavam umas festinhas dos jovens, ele era conhecido entre os ‘íntimos’ como Robocop, porque tinha um jeito de dançar, digamos, meio duro..rsrs...Foi uma alegria grande quando os dois começaram a namorar, e alegria maior ainda quando me tornei ‘dinda’ deles. Nesse meio-tempo, Márcia e Sérgio começaram a namorar, e logo ele também se tornou grande amigo meu. Amigo, aliás, de longas conversas sobre a vida, amigo que me dava longos conselhos sobre a ‘alma masculina’, se é que isso existe...(desculpem, mas não poderia perder a oportunidade de fazer essa piadinha – até porque esses meus dois amigos são a prova de que ‘isso’ existe).
Enfim, o tempo passou e chegamos até aqui. Estivemos juntos, curtindo as crianças, falando das nossas rotinas, dos últimos acontecimentos, das coisas engraçadas da vida....demos boas risadas juntos, e foi muito bom voltar a fazer isso com eles. Eu tava mesmo com muitas, muitas saudades deles. Depois, fomos ver a Árvore de Natal da Bradesco Seguros, mais conhecida como Árvore da Lagoa, uma visão belíssima numa noite então já mais fresca, a rua animada, cheia de gente que também foi lá apreciar a árvore.
Chegando em casa, senti vontade de registrar esse momento, pra fazer uma singela homenagem a esses amigos que alegraram minha noite, e também homenagear meus tantos outros amigos que tornam minha vida tão bonita. Sou feliz porque tenho ao meu lado amigas fortes e guerreiras e amigos admiráveis. 
Às amigas parrudas, às amigas insolentes, às amigas partideiras, às amigas presidentas, aos amigos xique-xiques e às amizades renovadas esse ano.... e também a todos os outros e outras que não mencionei aqui, mas que estão bem guardados no meu coração...meu “muito obrigada” pelo suporte no amor. Saibam que eu realmente acredito que a amizade verdadeira dá sentido à vida. Vocês dão sentido à minha vida.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Dança do Ventre


Pessoal, estou muito empolgada com o fato de que começarei a fazer aulas de dança do ventre. Quem me conhece sabe que eu não sou uma exímia dançarina. Vai ser então um desafio muito legal começar a fazer aulas de dança, o que nunca tinha feito. E vai ser também uma boa oportunidade de mudar minha relação com o meu 'ventre'...rsrs...espero que ele diminua um pouquinho, por falar nisso...rsrs...vou dando notícias dos avanços nessa arte milenar tão bonita, e tão sensível ao universo feminino. E esse será outro ganho, o de certamente trabalhar 'o feminino' por meio dessa dança. Vamos ver no que vai dar.

Chove no Recife

Vista da rua da Aurora. O prédio mais alto à direita é onde moram meus tios. 

Chove no Recife. Um manto de água cobre toda a cidade, e confere à paisagem o tom acinzentado dos temporais. Do alto de um prédio na rua da União, observo atentamente tudo o que se passa lá fora. 
O mar, que em dias de sol apresenta os tons de verde esmeralda, em dias como esse some, completamente imerso nas colunas d'água que sucessivamente atingem a cidade - primeiro uma, depois outra, logo após outra de novo. Somente nos intervalos das chuvas, quando o céu pára pra descansar de tanto desabar, é que se enxerga, bem longe, seu verde tímido e opaco. Mas logo outra coluna líquida inicia seu deslocar em direção aos prédios, e todos, da zona sul à zona norte, são igualmente lavados pelos pingos d'água que bailam no ar ao sabor do vento. 
E vem do vento e da chuva a música do temporal. Enquanto os pingos d'água dão a marcação constante, os ventos uivantes lhe conferem os 'solos'. Da chuva a espessura, a profundidade do som, e do vento a melodia triste e fria. Mas o vento é também expressão da ansiedade da natureza. Enquanto nas águas que caem tudo é constância - chover, chover, chover - o vento é pressa e liberdade. Rodopia, passa assobiando entre as frestas das janelas, move a coluna d'água, precipita ao chão os prematuros jambos d'uma árvore da rua da Aurora. Canta, corre, canta...Parece, apaixonado, querer avisar a tudo e a todos da chegada da chuva, sua amada. Parece querer ensurdecer-nos para os sons da cidade. 
Chove no Recife. Observo o balé do vento e da chuva, casal que se completa na pressa e na calma, na ânsia e na constância. E eu pacientemente olho, querendo enxergar além - que a chuva fecunda o solo, e minha alma também.
Chove no Recife, chove no Recife...


(escrito em 16 de junho de 2004, em Recife. Inspirado humildemente no romance Homens e Caranguejos de Josué de Castro, e no poema Evocação do Recife, de Manuel Bandeira. Ambos os escritores são pernambucanos)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Um encontro inusitado


Esse texto também poderia se chamar "Um pequeno drops sobre a felicidade", pois trata de um encontro fortuito e inusitado entre duas pessoas de mundos bem diferentes, e suas reflexões sobre a felicidade.
Estava eu no ônibus, indo visitar meus afilhados. O trajeto passaria pela praia da Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Antes disso, porém, sobem ao veículo os dois personagens de nossa estória. Primeiro, um rapaz, de no máximo uns 25 anos, branco, beeemmm magrinho, cabelos e armação dos óculos pretos, vestido com uma calça preta, chinelos, e uma camisa quadriculada. "O típico estilo intelectual", pensei, enquanto o observava pagar a passagem. Ele se sentou em um banco perto de mim, mas não ao meu lado. 
Mais à frente no trajeto, sobe um senhor, negro, vestido de um short e uma camiseta bem usados, um boné e um chinelo. Enquanto passava na roleta, ele cantarolava e dizia prá trocadora que era fã do Zeca Pagodinho. Em meio aos arrancos do ônibus, esse senhor se esforçava pra se equilibrar, o que dava a impressão de que estava bêbado. Talvez tenha sido isso que o cara que estava ao meu lado pensou pois, em ar de repreensão, balançou a cabeça em sinal negativo, enquanto o tal senhor se dirigia a um banco mais pro meio do ônibus, cantarolando versos da música "Deixa a vida me levar". Aí, percebendo a atitude do cara ao meu lado eu até pensei: "engraçado, o que ele tem a ver com a vida do cara, deixa ele!" Fiquei ali uns segundos, me entreolhando com a cobradora, que olhava o tal senhor lá atrás e sorria. Eu sorria também, pensando que o cara era uma figura.
De repente, percebo que o tal rapaz 'intelectual' estava com o corpo virado em sua cadeira, olhando o senhor  lá atrás, que continuava a cantarolar, entre gritinhos e imitação vocal de uma cuíca, literalmente curtindo sua viagem. Eis que após algum tempo o rapaz se levanta rapidamente e se senta ao lado do senhor, e começa a puxar assunto com ele. O intelectual, indie, sei lá o quê, foi lá, conversar com o cara que metade do ônibus achava maluco, e a outra metade tinha por bêbado. Eu particularmente achei aquilo o máximo. Ainda olhei pra trás e ouvi o início da conversa. "Você gosta de cantar?", perguntou o rapaz. "Sim, eu gosto", respondeu o senhor. "Que legal, cara!", exclamou sinceramente o rapaz. Eu fiquei ali na minha cadeira, querendo ouvir a conversa, mas sem êxito por conta do barulho do ônibus. Minutos depois, não me contive e fui sentar na cadeira ao lado deles. Eu tinha que escutar aquela conversa, entre aquelas pessoas tão diferentes, pensava. Lá sentei, mas o barulho do ônibus realmente me atrapalhava escutar toda a conversa. Mas escutei o essencial. Eles falavam sobre felicidade.
Vivemos num mundo (ou num país, ou numa cidade) em que um encontro como esse é inusitado por duas razões, pelo menos. Uma é a de que infelizmente estamos com medo do outro. Não queremos papo com desconhecidos na rua, ainda mais em se tratando de um 'negro', 'velho','bêbado' ou 'maluco'. E nessa, perdemos a oportunidade de conhecer pessoas incríveis, e de aprender com elas coisas incríveis. E nesse sentido a atitude do rapaz foi louvável, por enxergar que aquele 'velho bêbado' tinha algo a lhe ensinar. A outra coisa que faz esse encontro inusitado é a própria característica dos personagens, representantes de mundos tão opostos nesse país que amo tanto chamado Brasil. Um, jovem, branco, universitário - estudante de cinema, morador pelo que escutei do Leblon, 'antenado', 'moderno'. O outro, um senhor, negro, pobre, que adora o Zeca Pagodinho, e que se sente muito feliz por cantarolar suas canções. Os dois conversavam animadamente, verdadeiramente. E eu, que não escutava muito, gostava do que via.
Soube que o tal senhor conhece o Zeca Pagodinho. Ele trabalha num quiosque da orla da praia da Barra, em frente ao prédio em que o Zeca mora, e onde este vai sempre que pode pra prosear e cantarolar. Conhece o Zeca Pagodinho há anos, há anos toca cavaquinho pro Zeca cantar, e os dois são amigos de tal forma que o próprio Zeca 'banca' os estudos de engenharia de seu filho. Soube também que esse senhor também compõe, e que o Zeca gosta das suas músicas. 'A gente é muito amigo', disse ele algumas vezes ao rapaz. E o rapaz, estava eufórico! Sorria, e batia na perna e dizia "cara, que fantástico! você é muito legal! que bonito, você é feliz, cara!" E aí o senhor disse que era feliz, que vivia a vida dele com o que tinha, que fazia o trabalho dele, que gostava de cantar, que era feliz, que muita gente tem dinheiro e não é feliz, que não é preciso de muito pra ser feliz. "Sou corno, mas sou feliz", disse ele, e nessa hora o rapaz deu uma garganhada! E eu ri também, claro. Continuaram conversando por uns minutos, o rapaz dizendo a ele era estudante de cinema e que reunia umas pessoas às vezes pra conversar, trocar experiências de vida, e que gostaria de convidar o tal senhor pra falar pros amigos dele sobre essa alegria, sobre essa felicidade gratuita que ele tinha. O senhor topou, e o rapaz disse que o procuraria no tal quiosque pra combinar detalhes. 
Quando o senhor desceu, eu prontamente olhei pro rapaz e puxei assunto. Ele estava extasiado com a conversa, e certamente contaminado com a alegria daquele senhor, amigo do Zeca Pagodinho. Ele me disse que quando o senhor entrou no ônibus cantando ele achou o máximo, e ficou olhando pra ele pra ver se ele era ou não maluco. Quando percebeu que ele não o era (usando uma técnica de identificação de doidos que me descreveu rapidamente), foi logo conversar com ele. E durante a conversa, percebeu que ele era bem lúcido. Eu lhe disse que o cara ao meu lado tinha indiretamente repreendido o senhor, certamente o achando bêbado. "Foda-se, e daí se ele tá bêbado, ele tá feliz!", me disse o rapaz, sorrindo. Trocamos mais algumas palavras, e ele também desceu do ônibus.
E eu fiquei ali pensando que é isso mesmo, foda-se pra qualquer tentativa de formatar a felicidade ou a busca por ela. Não existe receita de bolo pra encontrá-la, como aliás não existe receita de bolo pra quase nada nessa vida - talvez, só pra fazer bolo. Certamente muitas das pessoas que estavam naquele ônibus estão às voltas com seus dilemas, mas tentando exteriorizar auto-controle, posses...mas no fundo, fúteis, infelizes. E o Amigo do Zeca, em toda sua humildade, mandou um recado bonito...deixa a vida me levar....vida leva eu....talvez ele não tenha nem se dado conta, mas alegrou o dia de pelo menos três pessoas: o meu, o da trocadora e o do rapaz que por alguns minutos foi seu amigo também.